2021, invenção dos homens

por Jorge Aragão

Por José Sarney

O tempo é uma invenção dos homens. O que existe é a eternidade, sem começo nem fim. Mas o homem resolveu marcar a vida pelos anos. Nós, cristãos, pelo nascimento de Cristo, há 2020 anos, menos que uma gota de água na imensidão dos dias e das noites. Os judeus têm o seu calendário, os chineses idem, e nós este que seguimos, chamado de gregoriano porque foi São Gregório que conseguiu esta fórmula de 28 dias em fevereiro, de quatro em quatro anos 29 e meses de 30 e de 31 dias, tudo de modo a fechar a rotação da Terra em torno do Sol nos 365 dias e ¼ de um ano.

No tempo bíblico se vivia muito. E não são poucos os personagens que viviam séculos, o maior deles, Matusalém, avô de Noé, que chegou aos 969 anos e não sabia quantos filhos, netos, bisnetos e tataranetos tinha, porque todos eram avós e bisavós e já tinham morrido. Até aos 187 anos procriou e Noé, seu neto, até aos 500 anos. Todos os patriarcas, segundo a Bíblia, viveram muito e funcionaram demais.

Hoje, na sociedade digital, da comunicação em tempo real, a gente tem a impressão de que há uma compressão do tempo, porque tudo passa rápido e a gente sabe de tudo enquanto acontece. O ano passa como um raio e quando a gente pensa que é janeiro já é setembro e logo acaba um ano e começa outro. Aqui no Brasil querido, não se conta os anos por primavera, verão, outono e inverno. É Natal, Carnaval, Quaresma, São João, julho das férias, Semana da Pátria, feriado gostoso de meio de semana que a enforca toda, Finados e dezembro com os sinos do Natal que começam a tocar em outubro. E o ano acabou e começa tudo de novo.

As mulheres não gostam muito de conhecer o fim dos anos. Eu tinha uma tia solteirona, velha, que tomava conta da casa de um tio avô. Um dia, seu aniversário, perguntei-lhe: “Manana – era seu nome -, quantos anos a senhora está fazendo?” Ela me tomou pelo braço, entrou no quarto e me disse: “72 anos, agora vai dizer lá fora, seu abelhudo.”

Eu tinha um amigo cuja família toda se preparou para comemorar os seus 70 anos. Data redonda, que marca a vida de todos nós, porque a partir daí começa a velhice mesmo. Ele se recusou a fazer 70 e proibiu a família de falar nisso. Uns dois anos depois – éramos muito amigos e vizinhos – seus filhos me procuraram: “Tio Sarney, veja se papai aceita completar 70 anos, nós estamos com a festa feita já há três.” Não houve jeito. Nunca revelou a idade e, quando se fazia o livro da biografia dos senadores, seu maior cuidado era ir à Gráfica do Senado e subtrair uns dois anos.

A verdade é que é muito bom fazer aniversário e assistir à mudança de ano. Saulo Ramos, meu querido amigo, sempre dizia: “A outra solução é pior. Melhor é confessar!”

Em São Bento tinha um senhor muito respeitado que era casado com uma viúva que tinha uma enteada balzaquiana. Dizia-se que vivia com as duas. Mexerico da cidade. Uma doida, dessas que antigamente perambulavam pelas ruas, cantando, chegou na sua porta no fim do ano e começou a cantar e dizer palavrões: “Sua velha devassa, vá embora…” Ela, Georgina, não se fez de rogada: “Seu Abílio, o senhor que dorme com a mãe e beija a filha, dorme com a filha e beija a mãe, diz que eu que sou devassa! Agradeça o ano que passou e vá à missa…”

Todos souberam na cidade que a Georgina não era tão doida como parecia. Milagre do Ano Novo.

Feliz Ano Novo a todos os de boa vontade! Deus conosco com a vacina – e felicidade!

O menino é um de nós

por Jorge Aragão

Por José Sarney

O ser humano sempre teve, na longa história de sua presença no mundo — que, diante da história da vida, é curtíssima, e um nada diante da do universo — uma imensa vontade de compreender a si mesmo. Mas o momento decisivo de todo o seu percurso é algo que ele não pode compreender, um mistério. Essa palavra significava justamente algo fechado à percepção. Mistério altíssimo e, no entanto — ou por isso mesmo, por ser divino —, tão simples em sua narrativa, tão banal na sua forma exterior, aparente, repetida tantos bilhões de vezes: o nascimento de uma criança. Só que essa criança é Deus. É Deus quando o anjo Gabriel diz à jovem Maria: “O Senhor está contigo!” — e explica: — “O Espírito Santo virá sobre ti.” É Deus quando ela aceita: “Eu sou a serva do Senhor!” É Deus quando “se cumpriram os dias … e depois de envolver seu filho em panos deitou-o numa manjedoura”. É Deus quando o anjo fala aos pastores: “anuncio uma grande alegria”.

Esse mistério se prolonga, e o menino cresce na casa humilde de José e Maria, e nos ensina que há um mandamento, o do amor, e, por isso, por esse mandamento, morre “morte de cruz”, não sem antes ter tido medo, pois é Deus e é homem. E por isso ressuscita.

É da alegria do nascimento de Jesus que alimentamos nossa vida. O que podemos saber desse mistério de Deus se tornar homem e “habitar entre nós”? Nada, e tudo, pois os últimos anos de sua vida foram passados para nos revelar essa lição tão curta, tão clara e que às vezes parece tão difícil de cumprir: Deus, Jesus, o Menino Jesus é um de nós, e, portanto, esse “nós” é imenso, é tão grande que inclui toda a humanidade, a que vive e a que viveu. Amar ao próximo “como a si mesmo” ou “como Ele nos amou” é amar a si mesmo, pois somos todos uma coisa de nada, mas imensa, incomensurável, porque “temos parte” — assim disse Jesus, diante de João, que nos contou, a Pedro — com Ele.

Este ano terrível da pandemia nos afastou, mas não afastou o nosso amor pelo próximo, por nossa família, por nossos amigos. Não apenas porque, pela internet, pudemos falar e estar com os outros, mas porque ela, a pandemia, nos aproximou, ela fortificou os nossos laços de união, ela nos fez sentir que somos parte da humanidade, que nossa vulnerabilidade é a fragilidade de todos e cada um de nós, que não podemos escapar ao destino comum — que, se podemos escapar, é pelo caminho que se abre para todos.

Muitos anos antes desse dia eterno, Isaías disse: “Ele próprio virá e nos salvará… / e [aos] que foram reunidos por causa do Senhor / … uma alegria os tomará. / Para longe foram dor, tristeza e suspiro.”

Diante do Presépio, diante desse Menino que nasce na humildade absoluta, se vestindo assim da glória nas alturas que cantam os anjos, a fraternidade é a porta que nos é aberta para a salvação.

A ciência perderá

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Este título é apenas provocativo e me foi inspirado pela atitude do famoso Laboratório Pfizer de colocar no frontispício das suas instalações, na sua sede em Nova York, a frase Science Will Win (A ciência vencerá), numa resposta àqueles que estão envolvidos no mundo inteiro numa discussão sobre a eficácia dos medicamentos, a obrigatoriedade da vacina, sua eficiência e a confiança nelas, temas que servem de debate político, como também ameaçam seu negócio, que vive de descobrir remédios e vendê-los.

Evidentemente que vacinas e medicamentos, sendo problemas sérios de saúde pública, têm que estar sob constante vigilância, para evitar falsidades, charlatanismo e falsificações. Essas agências têm essas altas responsabilidades. Como exemplo basta citar a FDA dos Estados Unidos, tão temida e selo de qualidade.

Essa hipótese de confrontação entre política e ciência dá margem a uma meditação mais profunda, que é se existe antagonismo entre elas, e a uma indagação mais instigante: a política é uma ciência? Esta felizmente já é uma questão superada.

Mas sempre me levou a refletir sobre os benefícios da política e da ciência para a Humanidade. A base da ciência é a experimentação e a observação; a da política, a busca de meios, métodos e caminhos de se fazer a felicidade do povo, resolver seus problemas e, sobretudo, assegurar a paz mundial. Harmonizar conflitos e encontrar soluções que sejam regras e formar objetivos de convivência humana e entre os povos. O abandono da força e a busca de decisões em que o povo tenha participação cada vez maior.

Daí o papel de base da política é o de ser a guardiã da liberdade. Através dela assegurar os direitos humanos. A síntese desse conceito está na Declaração Universal dos Direitos Humanos, feita sob o choque da 2ª Guerra pela ONU, redação admirável, cujos fundamentos vêm da Revolução Gloriosa inglesa, da Revolução Francesa e da Revolução Americana: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.”

Ela fixa liberdade de pensamento, direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais e de autodeterminação, inclusão digital.

Os políticos ao longo dos milênios civilizaram a humanidade e deram condições a que a ciência se desenvolvesse. Mas é com a maior franqueza que temos que reconhecer que a ciência prestou muito mais serviço à qualidade de vida e à sobrevivência da Humanidade do que todos os sistemas políticos inventados e desenvolvidos pelos políticos.

Hajam vista as vacinas, que evitaram que as doenças desconhecidas acabassem com a vida na face da Terra.

Qual político ou sistema político fez para a Humanidade tanto quanto fizeram Fleming descobrindo a penicilina; Sabin, a vacina contra a paralisia infantil; Pasteur, descobrindo bactérias e microrganismos.

Assim, se o lema da Pfizer não fosse verdadeiro e ali fosse escrito “A ciência perderá”, o mundo não poderia ler aquela afirmação. Todos estaríamos mortos.

Outra guerra da vacina

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Faz parte da História do Brasil a famosa guerra da vacina, do princípio do século XX, em que os cadetes das escolas militares se levantaram contra a vacina que Osvaldo Cruz começava a aplicar e contra o plano para saneamento do Rio de Janeiro. A capital tinha uma situação sanitária precária e péssima reputação. Para completar tivemos a grande figura de Rui Barbosa aderindo à causa contra a vacina de maneira virulenta, colocando sua eloquência para condenar a vacinação obrigatória. Hoje, quando a gente lê os discursos que fez fica estarrecido: como um homem de uma inteligência tão brilhante podia defender tais absurdos? No fundo as correntes que se digladiavam tinham uma motivação política, governo x oposição. Mas esse é passado a esquecer.

Agora vivemos outra guerra da vacina. Não como a outra, que era a negação da ciência. Com o Coronavírus a humanidade está enfrentando uma doença que já fez milhões de mortos e de infectados, mostrando o sistema de saúde mundial carente de equipamentos e recursos humanos.

Por outro lado, devido a seu alto poder de transmissibilidade, disseminou um medo que mudou a vida social e a rotina das cidades. Mas é difícil controlar os bilhões de seres humanos e seus hábitos de vida. Todo mundo devia recolher-se em casa, usar máscara e evitar contato pessoal, ainda mais os velhos, com agravantes que diminuem a capacidade de defesa do organismo.

Pois há uma guerra política de quem vacina primeiro, qual a vacina melhor etc. Mas sem dúvida a maior de todas, sem aparecer, é a guerra dos laboratórios pelos bilhões a ganhar com um mercado gigantesco de fregueses prontos para gastar o que tem e o que não tem para livrar-se do mal.

Sobre este ponto gosto de lembrar uma história contada por meu querido amigo Severo Gomes: um laboratório pedia desculpas aos acionistas pelo pequeno rendimento das suas ações: “Tivemos um inverno fraco, baixo nível de doenças respiratórias, pneumonias, gripes. Mas fiquem tranquilos os acionistas que as previsões do próximo ano são de um inverno brutal, em que vai morrer muita gente e vamos recuperar os baixos lucros deste ano.” “O lucro é a lógica do mercado” — e por trás dessa guerra das vacinas lá está ele.

Já disseram que a vacina russa não prestava, que a chinesa não era segura e agora que a de Oxford, com algum fundamento, tem erros de metodologia que podem atrasá-la.

Meu ponto de vista é que o mundo está longe de pensar na vida. A vacina deve ser obrigatória e todos os governos mundiais deviam estar juntos, sem que estes medicamentos fossem objeto de comércio, todos unidos para salvar a Humanidade. E precisamos nos adaptar às limitações da Terra, deixando de agredi-la e poupando seus recursos. Do contrário um vírus desses, o Sars-Cov-2 ou outro que sem dúvida alguma vai aparecer, vai acabar com o gênero humano, e a Terra vai vagar sozinha no espaço infinito com suas belezas até o sol esfriar.

Helmut Schmidt dizia: a maior ameaça ao futuro da Humanidade são “as doenças desconhecidas”.

Lave as mãos, use máscara, não saia de casa, mas que a vacina venha, urgente, é nossa grande esperança.

Deus a traga logo e nos evite sofrer mais espera.

A causa negra também é minha

por Jorge Aragão

Por José Sarney

As causas da raça negra e da cultura foram as duas maiores preocupações minhas em 12 anos de Câmara dos Deputados e 40 de Senado. Sou o Senador que mais tempo exerceu mandatos naquela Casa. E o político mais longevo da República, com mais de 60 anos de atividade e ainda presente — sem militância partidária, mas Presidente de Honra do MDB, partido a que sou filiado há 36 anos. Exerci por oito anos a Presidência do Senado Federal.

Sempre discordei da maneira como o problema da raça negra era tratado. Só existia o discurso político de retirá-la da situação de miséria e de segregação social. Minha visão, que nunca havia sido colocada na República — mas tinha origem em José Bonifácio e Joaquim Nabuco —, era de que somente com ascensão social, educação, participação em postos de direção ela sairia desse longo caminho de discriminação. Essa foi a solução adotada pelos Estados Unidos, que em parte deu certo, permanecendo, entretanto, o violento racismo.

É que o problema deles era muito mais grave do que o nosso, com as sequelas da guerra de secessão. Mas lá já chegou um negro à Presidência da República e agora uma mulher negra, Kamala Harris, à Vice-Presidência, como muitos chegaram a outros altos cargos da República e do poder econômico.

Quando era Presidente da República ocorreu o Centenário da Abolição. Em vez de comemorações políticas, criei a Fundação Palmares, com a finalidade de promover a ascensão social, a educação e as oportunidades de trabalho para os descendentes dos escravos. No Parlamento, como Senador, apresentei o projeto de lei de cotas raciais, que nunca tinham sido tratadas no Brasil e estabeleci que eram o caminho.

O Senador negro Paulo Paim pediu-me para absorver meu projeto no Estatuto da Igualdade Racial. Concordei, porque meu objetivo não era político, mas o de criar o debate sobre o problema e lançar a política de cotas para ajudar a resolver a questão. Meu projeto, no entanto, era bem mais amplo, incluindo os cursos de graduação, os cargos públicos e o financiamento dos estudos.

Orgulho-me de ter tido uma participação na defesa dessa maioria-minoria que continua a sofrer depois de quase quinhentos anos de presença no Brasil. Nosso débito com a raça negra é a maior dívida que temos em nossa História.

O Dia da Consciência Negra mostra que se mantém o caminho fracassado do passado. Pensa-se como sempre em dividendos políticos e nada de objetivo para fazer com que os negros tenham na sociedade o mesmo lugar dos brancos.

Outro débito que temos — e digo com a autoridade de quem é um lutador desta causa e detentor do Prêmio Zumbi, que me foi entregue pelo grande negro José Vicente, Reitor da Universidade Zumbi dos Palmares — é com o Negro Cosme, da Balaiada, enforcado no Maranhão, que ficou no esquecimento e devia estar sendo reverenciado junto com Zumbi.

Ele deu o maior exemplo do que precisava a raça negra: criou uma escola no quilombo. Ele já sabia que só a educação liberta.

Uma eleição fora da curva

por Jorge Aragão

Por José Sarney

É com uma mistura de ansiedade e esperança que chegamos à eleição mais diferente que já vi. A política, que sempre se agita, é claro, no momento em que os eleitores escolhem seus representantes e governantes, nesse caso vereadores e prefeitos, apareceu pouco na vida diária, com a restrição de aglomerações e toda a atenção da imprensa voltada para o sul e para o exterior.

A eleição que parecia existir realmente era nos Estados Unidos, entre Biden e Trump, que até hoje bate o pé que ganhou o que perdeu. Na campanha norte-americana, que coincidiu com o começo da nova onda da Covid-19, o comportamento dos dois candidatos a presidente foi muito diferente, com o Biden usando máscaras e optando pelos contatos virtuais, o Trump desprezando as recomendações médicas e indo ao encontro de seus seguidores fanáticos. Pela esperança de uns de que o radicalismo de direita continuasse, a certeza de outros de que precisavam deixar para trás aquele acusado de ser o pior presidente da História americana, em plena pandemia fizeram grandes filas de eleitores – e uma parte importante votou pelo correio ou antecipadamente.

Dificilmente se saberá as consequências da proximidade exagerada das pessoas, mas o certo é que a comunidade da Casa Branca está aos farrapos com as contaminações, que teriam comprometido, pelo número de atingidos, a segurança presidencial.

Aqui no Maranhão, felizmente, a doença segundo as estatísticas oficiais está estável, e espero que isso não seja comprometido pelo dever cívico de votar. O nosso sistema de alistamento e voto com controle estatal e centralizado é certamente, nesse ponto, muito superior ao norte-americano, que é um caos que funciona. Isso não quer dizer que não tenhamos nossas falhas no processo eleitoral, e a maior delas é a da inexistência de democracia partidária, por sua vez uma das causas do exageradíssimo número de partidos. Não temos o essencial num partido, que é o programa que define suas ideias, formando uma organização em torno de princípios comuns de como devem ser governo e Estado.

Mas as atenções estavam voltadas, eu dizia, para o sul, onde está se concluindo nossa participação no desenvolvimento da guerra das vacinas. É algo em que não pode haver qualquer intervenção que não seja de total apoio à pesquisa e à medicina. Lembro que o mundo tem 53 milhões de casos confirmados. A Humanidade somos 7,8 bilhões de pessoas. O tal “efeito manada” deve se dar quando 70% tiverem sido contaminados: 5,4 bilhões – nem pensar! Nossa esperança, portanto, está na vacina. Que venha logo!

Enquanto isso não descuidemos, inclusive na hora de votar, das recomendações básicas: máscara, distanciamento social, higiene das mãos etc. A nova onda da Covid-19, que parece estar relacionada com a aproximação do inverno, está atingindo em cheio a Europa e a América do Norte. Os dados são alarmantes, muito superiores aos dos picos da primeira onda. Países que tinham tido comportamento modelar, como Áustria, Suíça, Eslováquia, estão na ponta dos valores relativos.

Mas assustam mesmo os números crus: os Estados Unidos pularam em dois dias de 100 para 150 mil novos casos diários.

Trump quer destruir a democracia

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Costumo dizer que não estamos vivendo em um mundo em transformação, mas num mundo transformado. Com o Covid-19 especula-se que vamos viver um novo normal. Ninguém pode dizer o que isto será. Mas antes que ele venha estou estupefato diante de algo que jamais pensei que pudesse ver.

A minha admiração pelos Estados Unidos vem do orgulho de que tenha saído do Continente Americano o país que transformou o mundo, tornando-se a maior nação da terra, líder e exemplo para todos os povos. Deles surgiu o sistema político que Fukuyama afirmou ter levado ao fim da História, com o domínio da democracia liberal e da economia de mercado.

Formou-se um sistema de governo capaz de garantir a ideia de que todos são iguais perante a lei e ninguém pode ser discriminado em razão de cor, raça ou religião. Cristalizaram-se as ideias de liberdade, direitos humanos, dignidade humana, governo do povo e para o povo. E esses direitos foram consagrados de tal maneira que passaram a ser um ideal universal.

Alexis de Tocqueville escreveu em 1835 um livro clássico, no qual ele profetizou que os Estados Unidos iriam “por algum desígnio secreto um dia controlar em suas mãos os destinos de metade do mundo”. E sempre afirmei que foi a grande sorte do mundo. Calcule se saísse da velha Europa ou de qualquer parte outro país que tivesse como bandeira ideal usar a força, a supremacia de raça — como aconteceu na Alemanha de Hitler — ou pregasse a religião como base das nações. Estamos presenciando um conflito de civilização no Oriente Médio. Mas foram os Estados Unidos que pregaram a liberdade, como forma de vida que venceu.

Pois não é que agora, com grande espanto, em pleno século XXI, ouvimos sair da boca de um Presidente dos Estados Unidos que ele pode não aceitar o resultado de uma eleição e não entregar o poder, como se seu país fosse qualquer republiqueta dos séculos passados, quando a alternância do poder pudesse ainda ir contra a decisão soberana do povo.

Isso eu considero a maior e mais impensável coisa a que pudéssemos assistir. A solidez do maior e mais forte país democrático do mundo comportar uma afirmação dessa natureza. Jefferson, Madison, Washington devem ter tremido em seus túmulos e abominar pela eternidade um Trump, negar-lhe a companhia dos homens que fizeram a Constituição de Filadélfia, o maior documento produzido pelo homem para regular suas relações e o viver pacífico em sociedade.

Trump, com seu comportamento e sua frase, acaba por fazer uma síntese do que buscou ao longo de seu governo. Foi caminhando para o isolamento americano, para a divisão da sociedade, para uma nova guerra fria — e até quente. Seu objetivo é inaceitável: destruir a democracia!

Presente dos 90 anos

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Depois de presidente da República recebi um honroso convite da Universidade Brown, uma das oito grandes universidades da chamada Ivy League, de grande prestígio, para participar de um colóquio na Biblioteca John Carter Brown. Sua coleção, a mais completa e valiosa Americana – uma biblioteca de livros e mapas raríssimos sobre o triplo continente -, tem, portanto, singular interesse para nós da América Latina. E não contém nenhuma obra posterior a 1820, se não me falha a memória.

O Carter do nome da biblioteca não tem nada a ver com o ex-presidente Carter, mas com o grande colecionador que a fundou, filho do patrono da Brown University. Era também ligada ao Brasil pelo fato de José Mindlin, nosso mais conhecido bibliófilo, ter sido membro do Conselho da Biblioteca.

A Associação dos Brasilianistas, que naquela época tinha como presidente Thomas E. Skidmore – que escreveu sobre a política brasileira de Getúlio a Castelo -, tinha sua sede na biblioteca. Entre seus membros estava um dos maiores pesquisadores da área, Ronald M. Schneider, autor de inúmeros livros, entre eles The Political System of Brazil. Eu o conhecera num jantar com vários brasilianistas que recebi quando presidente da República. Surpreendeu-me porque falava português meio arrastado. Eu lhe perguntei como aprendera a nossa língua: para uma risada geral respondeu: “Na cama; fui companheiro durante oito anos de uma bela paraense…”

Nunca mais o vi. Não é que em 2009 recebi, por intermédio do brilhante embaixador Jerônimo Moscardo, a visita do Schneider, que veio me falar de um livro seu sobre a transição democrática. Concluiu dizendo-me que a melhor transição do mundo fora a brasileira, com todas as suas dificuldades: a morte de Tancredo, a falta de apoio militar, a convocação de uma Constituinte, a realização de uma nova e inovadora Constituição, a de 1988, e a eleição para minha sucessão, quase ganha por um operário. Lembrava a ausência de qualquer hipoteca militar, a modernização das Forças Armadas e destacava minha liderança. O livro já estaria pronto e entregue a uma editora americana. Surpreendeu-me mais ainda o título do livro: Sarney, 60 Anos de Política.

Dois anos depois um amigo meu comprou os direitos autorais para o Brasil. Agora – como se fosse um presente para os meus 90 anos – a Editora Krauss acaba de editar o livro, que já está em algumas livrarias de S. Paulo, com um generoso prefácio do embaixador Seixas Corrêa e um texto de capa do também intelectual Jerônimo Moscardo. Eu fiquei feliz. O livro é muito bem feito, porque não é só uma biografia minha, mas um estudo sobre um período difícil da nossa História contemporânea.

“Infelizmente Schneider faleceu há alguns anos sem ver a edição em português do seu trabalho.” A Editora Krauss me informou que a divulgação do livro está sendo prejudicada pela pandemia, mas que, em breve, promoverá o lançamento no Maranhão.

Todo poder à vacina

por Jorge Aragão

Por José Sarney

A vacina é o único socorro de esperança contra a ameaça da Covid. Já falei mais de uma vez do cálculo de Malthus sobre a expansão da Humanidade e da narrativa que Jared Diamond faz da ascensão e queda das civilizações: nos cenários, guerras e germes. A história das pragas é uma desgraça: desde as sete pragas do Egito, que são dez, o que se vê são as populações dizimadas. Dizimadas não: o decimatio castigava um em cada dez soldados, mas as pestes sempre foram mais radicais. A praga de Justiniano matou mais da metade da Humanidade; a peste negra, um quarto.

Para uma doença virar epidemia ou pandemia, ela precisa ser contagiosa e viajar. Assim nossas cidades marítimas não escaparam da reviravolta da natureza — pois é isso o que acontece quando mexemos com o meio ambiente, mesmo na “inocente” domesticação de rebanhos. Varíola, gripe, malária, dengue, febre amarela, SARS passaram por aqui. Houve a gripe suína, que era em parte aviária, mas tinha até fragmentos dos vírus da gripe espanhola; esta, com bagagem de 100 milhões de mortos, matou Rodrigues Alves, que acabara com a febre amarela; doença que o africano Aedes aegypti trouxe em 1685/6 para Recife e Salvador; mosquito que nós erradicamos duas vezes, mas continua matando com a dengue. A colheita das pragas é grande, e temos algumas vitórias e muitas derrotas. A maior, o impaludismo, nos bate há 10 mil anos.

O Brasil tinha uma história de vacinação. A primeira foi em 1804. Em 1811 tivemos mesmo uma Junta Vacínica. Com o uso direto do vírus ativo, acontecia de ser pior que o soneto. Um século depois, Rodrigues Alves chamou Osvaldo Cruz, jovem médico a quem não conhecia, para acabar com a febre amarela e a varíola. A imprensa, um grupo de médicos negacionistas e alguns conspiradores militares ficaram contra ele. Consideravam absurdo que os mata-mosquitos pudessem entrar nas casas para acabar com o Aedes.

A Lei 1261/1904 tornou obrigatória a vacina contra a varíola. A conspiração positivista, que faria chefe da ditadura a Lauro Sodré, partiu para a ação. Revoltou-se o Rio de Janeiro. O dia 14 de novembro foi de conflito armado. O governo dominou, com dificuldade, a situação. Na discussão do pedido de estado de sítio, Rui Barbosa, nosso maior intelectual, numa posição incompreensível, ataca: “Não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania a que ele se aventura… a me envenenar, com a introdução, no meu sangue, de um vírus… condutor da moléstia, ou da morte.” E apoia o governo, elogia o desbaratamento do golpe!!!

No Maranhão a história é outra. Cláudio Amaral Júnior, grande nome da vacinação no País, conduziu a campanha que em oito meses erradicou a varíola. Fiz o possível para ajudá-lo: acionei a estrutura das escolas comunitárias “João de Barro”, fazíamos os “Comícios da Saúde”, 15 dias de campanha preparatória e promovi a “vacinação num só dia”. Na Praça João Lisboa vacinamos 40 mil pessoas de uma levada, trabalhando até meia-noite. Essa experiência foi levada por ele e pela OMS para outros países.

Contra a Covid o caminho é claro: precisamos da vacinação em massa, alcançando indiscriminadamente dos mais ricos aos mais pobres. O Brasil tem instituições que são capazes de produzir rapidamente as vacinas que tenham sucesso. Aqui no Maranhão temos que nos preparar para aplicar as vacinas. Levantar voluntariado, treinar e organizar equipes, fazer um trabalho coordenado com os municípios, chegar aos povoados mais remotos.

Arroz amargo

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Há uma gritaria danada sobre o aumento do preço do arroz, que figura na cesta básica e em nossa cultura alimentar, indispensável em nossas mesas e nas do mundo todo. Como tudo mudou, até a linguagem, o aumento do custo de vida, que hoje chama-se “alta no preço de alimentos”, antigamente era “carestia”. Getúlio Vargas tinha verdadeira obsessão em usar essa palavra. Um dos principais objetivos de seu marketing era “combater a carestia”.

Sobre isso há um episódio pitoresco que marcou a vida de um excelente jornalista, depois radialista e dono de uma emissora de Brasília que só tocava música clássica. Chamava-se Mário Garófalo e na época era repórter da Rádio Tupi. Durante um embarque de Getúlio Vargas no Santos Dumont, ele, com absoluta cara de pau, o abordou e perguntou: “Presidente, o que o senhor acha da campanha das Casas Gebara contra a carestia?” Getúlio, tomado de surpresa, respondeu: “É uma grande contribuição em benefício do povo.” E transformou Getúlio em garoto-propaganda da rede de armarinhos Gebara. Foi um bom tema para humoristas e jornais.

Voltando ao arroz. O Maranhão foi um grande produtor de arroz, o segundo do Brasil. O primeiro era Goiás. O nosso arroz era de sequeiro, esse que não precisa de irrigação. Depois da modernização da lavoura, com a entrada da mecanização, nós perdemos essa posição.

O aumento do arroz foi de cerca de 25% em 2020. O Ministério da Justiça resolveu cobrar informações dos supermercados, e o Ministério da Economia, que teoricamente é contra qualquer intervenção no mercado, resolveu tomar satisfações com o Ministério da Justiça. Adam Smith não toleraria isso, nem o Olavo de Carvalho. Nem a Escola de Chicago. Assim, a imprensa me chamou à colação dizendo que queriam reeditar o Plano Cruzado. Eu, aqui comigo, penso que, se perguntassem ao povo se ele tem saudades do Plano Cruzado, ele diria que sim. Mas esse é um tempo que já passou.

O aumento dos preços já foi debitado à ajuda dada ao povo mais pobre no período da Covid pelo Congresso, certíssima e humana. Se fosse isso, significaria que os mais pobres não tinham nem como comprar arroz, passavam fome brava. E, como não comem aço, não podem ser culpados pelo aumento, que também houve, do preço do aço. O que se sabe é que, no caso do arroz, uma série de fatores contribuiu: a queda na produção, que foi de 12,3 milhões de toneladas em 2015 e caiu para 10,4 o ano passado, sendo estimada em 11,2 neste ano; o aumento do custo dos insumos, devido à desvalorização da moeda, boa para a exportação; e a própria exportação, com a produção brasileira mais competitiva também pelo câmbio.

Como hoje em dia os supermercados não têm campanha contra a carestia, o presidente Bolsonaro não corre o perigo de ser o Posto Ipiranga e servir de menino-propaganda.