Comendador Satyro

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Em toda parte, existem na memória as figuras populares que enchem o cotidiano das cidades. Aqui no Maranhão não é diferente. Sempre tivemos muitos: um deles era o Comendador Satyro Pamphilo, que andava sempre de casaca preta, cartola e bengala. Ele estava sempre muito sóbrio e sério, cumprimentando todos os que passavam por ele.

Mas a sua fama maior era por causa do espetáculo que fazia todo ano, chamado “A Queda da Bandeira”. Satyro fazia os convites à mão e colocava embaixo das portas das casas; levava quase todo o ano convidando para sua festa no Teatro São Luís — que depois passou a se chamar Teatro Arthur Azevedo.

O espetáculo resumia-se no seguinte: no dia 7 de setembro, ele colocava uma mesa, forrada com um pano verde, em cima do palco, bem na frente, e uma escadinha atrás dessa mesa, por onde ele subia. O espetáculo era muito popular, sobretudo entre os estudantes de direito, cuja faculdade ficava em frente do teatro. Às sete horas da noite, em ponto, o Comendador Satyro entrava no palco e subia na mesa. Uma fanfarra tocava o Hino da Independência. Então, Satyro se enrolava na bandeira e se atirava lá de cima, no meio da estudantada, que o recebia nos braços; não poucas vezes, ele ia ao chão.

O público aclamava e gritava:

— De novo! De novo! De novo!

E o Comendador Satyro subia novamente e tornava a se atirar no meio do pessoal. Era uma pataquada (como se dizia naquele tempo) terrível! Mas era célebre na cidade a “Festa da Queda da Bandeira do Comendador Satyro”.

Havia muitas outras histórias com Satyro, que fazia questão de ser chamado de Comendador. Ele escreveu um livro, Embófias de um cérebro inlustrado, que incluía um dicionário construído com uma série de palavras que ele inventou.

Meu pai, quando tinha uma festa de aniversário, citava o Satyro dizendo: “Temos hoje um ispiquitó”.

Era uma palavra dicionarizada pelo Satyro, com a seguinte definição: “Anatalácio de donzela moça.”

Outro termo era como ele definia polêmica de jornal: “metrandação”. E acrescentava: “metrandação cerebral”.

Política era “rega-bofe de anacoretas”.

Quando ficava sabendo que haveria festas de aniversário, de casamento, ele se apresentava aos anfitriões e era difícil que não improvisasse um versinho.

Foi assim que, na casa da Dona Doca, que aniversariava uma das filhas, ele saiu-se com esta:

— Matilde, Maria e Maroca / Três estrelas divinais / São filhas da Dona Doca…

Parou, procurou a rima e, não a encontrando, fechou com esse verso:

— …Com três diferentes pais.

Não é preciso dizer que foi expulso da festa.

A verdade é que, na paisagem das figuras populares, até hoje Satyro deixa muitas saudades.

Mas nunca esquecemos disto:

— Matilde, Maria e Maroca / Três estrelas divinais / São filhas da Dona Doca / Com três diferentes pais.

Chamando Bom Jesus da Lapa

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Eu era Governador do Maranhão e costumava viajar frequentemente ao interior do Estado. Muitas vezes, íamos também a outros Estados: a Boa Esperança, no Piauí, onde se construía a hidrelétrica; a Recife, sede da Sudene, onde, permanentemente, tínhamos assuntos a tratar sobre a Usina Hidrelétrica de Boa Esperança.

Um dia, saímos de São Luís para irmos a Minas Gerais, onde seria realizada uma reunião do conselho da Sudene, no avião Beechcraft que o Estado possuía. O piloto, que se chamava Ribamar, contava com uma experiência muito grande: fora piloto da Vasp, tinha 15 mil horas de voo. Fomos de São Luís a Boa Esperança e, em seguida, nosso destino era Montes Claros.

O voo seria longo, com umas quatro horas de duração. Saímos de Boa Esperança às 10 horas da manhã. Eu pedi a Ribamar que sobrevoássemos as nascentes do rio Parnaíba, que estavam bem à nossa frente, para vermos os rios Água Quente, Curriola e Lontra, formadores da Bacia do Parnaíba.

Com isso, nós nos desviamos da rota. Naquele tempo, só existiam, para orientar a navegação aérea, o radiogoniômetro e a bússola.

Nossa rota passava por Bom Jesus da Lapa. A verdade é que, com o desvio de rota, nós nos perdemos. Havia muita fumaça — já naquele tempo as queimadas corriam soltas —, e o avião jogava muito. Não víamos quase nada. O Ribamar chamava a rádio de Bom Jesus da Lapa — a única cidade que existia com campo de aviação e apoio de rádio naquela área.

Mais de meia hora se passara, e eu só ouvia o Ribamar chamando:

— Chamando Bom Jesus da Lapa! Chamando Bom Jesus da Lapa! Chamando Bom Jesus da Lapa! Chamando Bom Jesus da Lapa!

E eu repetindo, em oração:

— Bom Jesus da Lapa, nos oriente! Bom Jesus da Lapa, nos oriente! Bom Jesus da Lapa, nos oriente! Bom Jesus da Lapa, nos oriente!

De repente, comecei a ficar mais nervoso e perguntei ao Ribamar:

— Ribamar, onde nós estamos?

Ele bateu com as mãos, como a descartar qualquer informação, e disse:

— Governador, eu não sei!

Então, continuamos a nossa peregrinação chamando por Bom Jesus da Lapa. E nada de Bom Jesus da Lapa aparecer.

Até que o Senhor Bom Jesus da Lapa respondeu: depois de umas três horas de voo, ouvimos uma estação de rádio de Bom Jesus da Lapa.

Voamos em direção a Bom Jesus da Lapa orientados por uma estação de rádio broadcasting e não pela torre de aeroporto.

Finalmente, pousamos em Bom Jesus. A primeira coisa que fiz, em terra, foi me dirigir a um pequeno botequim do aeroporto e perguntar:

— O senhor tem uma marmelada aí?

— Não. Tenho doce de leite.

— Então me dê uma xícara bem cheia para que o açúcar possa compensar a adrenalina que perdi com medo de que Bom Jesus da Lapa não aparecesse.

Afonso e Getúlio

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Afonso Arinos de Melo Franco deu à tribuna parlamentar brasileira uma dimensão muito elevada, com peças memoráveis, que orgulhariam qualquer Parlamento, em qualquer tempo.

Em 1954, com o suicídio de Getúlio, teve uma profunda crise de depressão, supondo, como bom católico, que teria sido seu discurso do dia 9 de agosto — brilhante discurso! — o responsável pelo ato extremo do Getúlio.

Desse discurso arrependeu-se e, pelo resto de sua vida, não gostava de que o relembrassem dele. Afonso Arinos, seu filho, dizia que naquele momento o pai pensava no irmão, Virgílio, que fora um dos principais articuladores da queda do Estado Novo, assassinado em 1949. Virgílio, nos últimos dias de sua vida, acreditava estar sendo seguido pela guarda pessoal de Getúlio.

Segundo Afonsinho, tempos depois, Café Filho e Gustavo Capanema diriam a Afonso: “Seu discurso derrubou o governo.”

A série de discursos que vão do atentado de Tonelero ao suicídio de Getúlio forma algumas das páginas mais brilhantes nos Anais da vida parlamentar brasileira! Seu discurso do dia 13 termina assim:

“…lembre-se homem, pelas igrejas da minha terra, que ontem bateram os sinos contra a sua voz; lembre-se, pelos olhos azuis da Irmã Vicência, que se curva, hoje, com seus oitenta anos, no Convento de Diamantina, rezando pelo bem do Brasil; lembre-se, homem, pelos pequenininhos, pelos humilhados, pelos operários, pelos poetas: lembre-se dos homens e deste país e tenha coragem de ser um desses homens, não permanecendo no governo, se não for digno de exercê-lo.”

Eu lhe dizia que o Getúlio certamente não teria lido o seu discurso e seria o envolvimento familiar no drama que lhe trouxera a dúvida entre a vida e o suicídio. Não teriam sido as palavras de Afonso que o fizeram praticar o gesto extremo.

Afonso nunca deixou de acreditar que seus discursos tinham responsabilidade no suicídio do Presidente. Um pouco por vaidade e outro por peso de consciência, que ele guardou até o fim.

Quando, já depois da morte de Afonso, Lira Neto publicou seu excelente livro sobre Getúlio, ficou claro que sua atração pelo suicídio era antiga e que ele viveu seus dias finais num inferno íntimo, sentindo-se traído e abusado.

Afonso costumava contar um caso que mostra como a lembrança de culpa se transforma na memória. Um seu colega da Faculdade de Direito enfrentou um ladrão que tentara roubar a carteira de uma colega. Derrubou o ladrão, tomou-lhe a carteira e, ainda com um pé em cima do cujo, teve direito a uma foto como herói na primeira página do jornal Estado de Minas.

Passou o tempo e, um dia, Afonso Arinos pediu a seu pai, Afrânio de Melo Franco, que arrumasse uma colocação para o antigo amigo e herói. Quando disse o nome do colega, o pai indagou-lhe:

— Não foi esse, Afonso, que esteve envolvido no roubo de uma carteira?

O Tempo e o Vento

por Jorge Aragão

Por José Sarney

O jornal sempre foi minha paixão. A palavra impressa, transmitindo sentimentos, fazendo história, no contar o dia a dia. Quando estava no Liceu Maranhense, aos quatorze anos, fundei a Folha do Estudante, que desejava ser a alma dos jovens colegas, expressas na poesia, na crônica, no desejo de deixar as palavras impressas, eternizadas. Ficamos no primeiro número. Já no Grupo dos Poetas da Movelaria Guanabara, como não tinha chegado ao Maranhão a Semana da Arte Moderna de 1922, que marcou a literatura brasileira, fiz com Tribuzzi, Madeira, Luís Carlos Belo Parga, Evandro Sarney, Paiva Filho, Floriano Peixoto, Cadmo Silva, Figueiredo, Lucy Teixeira, pintores, poetas, cronistas, contistas o Movimento Neomodernista, como foi chamado no Maranhão. No Brasil todo surgiam revistas literárias para dar voz a nossa geração. Quixote no Rio Grande do Sul, com Faoro; Joaquim em Curitiba; Orfeu, com Lêdo Ivo, no Rio; Região na Paraíba, com Edson Regis; Clã no Ceará. Eu, Tribuzzi, Bello Parga, Madeira sonhamos fazer a nossa e fundamos A Ilha, que teve vida efêmera, dois números, mas marcou a contestação ao parnasianismo e ao que chamávamos “passadismo”. Gullar e Burnett tinham o Centro Cultural Gonçalves Dias, e Gullar disse depois que éramos mais avançados. Vi A Ilha desaparecer guardando os nossos primeiros gritos de inconformismo.

Já na política, Tribuzzi sempre ao meu lado, resolvemos fundar O Estado do Maranhão com o objetivo de modernizar a imprensa maranhense, até então mergulhada na sombra do pasquinismo panfletário do século XIX. Compramos o Jornal do Dia e o transformamos em O Estado do Maranhão, trouxemos a primeira rotativa para o Estado, uma rotativa Goss, muito primitiva e modesta, mas que por mais de vinte anos rodou o nosso jornal, que foi na época a modernidade chegando à impressão de jornal. Também fomos pioneiros na composição a frio, com um modelo Singer, que só nos deu dor de cabeça. Mas foi o primeiro e depois evoluímos.

Fizemos um jornal moderno, colorido, com um texto cuidado e dinâmico. Assumimos a liderança da imprensa no Maranhão até hoje, sendo uma tribuna dos problemas do Estado e um seminário permanente do debate de ideias. Por aqui passaram grandes nomes da literatura do Maranhão. O jornal foi dirigido por nomes importantes. Para dividir as minhas lágrimas, quero resumir todos no de Tribuzzi, que na eternidade chora conosco neste momento em que deixamos a edição impressa para ficar somente na digital. Seguimos a tendência mundial, forçados pela era do virtual, pela transferência da publicidade para a internet — e, é preciso reconhecer, dos leitores.

Não encontramos vacina para nos salvar. Foi a tecnologia que criou o jornal, de seus primeiros ensaios no século XVI ao vigor político do XVII, até ser motor das revoluções industriais e políticas dos séculos seguintes e tornar-se o Quarto Poder.

Por mais de quarenta anos todos os domingos a Coluna do Sarney levou minhas ideias aos nossos leitores.

Não sei dizer adeus. As fases que atravessei na vida — e elas se sucederam com a vida longa que a graça de Deus me concedeu — as encerrei chorando com os olhos, o pensamento e a garganta. Assim deixei minha coluna de sexta-feira na Folha de S. Paulo, ao completar 20 anos. Deixo agora as páginas de Estado do Maranhão para me adaptar à Coluna do Sarney digital, no Imirante, nosso vitorioso portal.

Não sei dizer e não digo adeus aos meus leitores. Este jornal de hoje guarda minhas lágrimas e meu coração dilacerado. É a vida. Pablo Neruda lamentava um amigo morto: “É um carvalho tombado no meio da casa.”

Aí estão os meus sonhos, sonhados com Tribuzzi e Odylo. Mas os sonhos não morrem, são sementes que germinam e florescem.

Republicanos e federalistas

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Hoje, República ganhou um status que nunca tinha tido na História do Brasil. Não falo do exercício do sistema de governo em si, mas da palavra republicano, que no Império nem na propaganda republicana era usada. No próprio Manifesto Republicano de 1870 a palavra só é usada no título do documento e do partido que se fundava. Seguia-se o exemplo americano, em que os fundadores, em seus debates sobre a Constituição, foram marcados pelo título de federalistas dado aos artigos de Madison, Hamilton e Jay, enquanto republicano era usado em oposição a democrático, forma de governo considerada então como anárquica.

Os pontos centrais das propostas republicanas no Brasil eram a federação e a legitimidade partidária. Apoiavam assim os políticos das províncias, insatisfeitos com o centralismo da Monarquia, o que dera origem à única emenda da Constituição do Império, o Ato Adicional. E defendiam “os partidos legítimos […] sem cuja ação o sistema representativo se transforma no pior dos despotismos, no despotismo simulado.”

Mas não foi um partido republicano que proclamou a República, e sim um golpe militar, gerado numa questão de facções, que se tornou decisiva depois da adesão do Marechal Deodoro da Fonseca, que detinha prestígio e poder muito grande nos meios militares. Deste modo a política brasileira não foi guiada por ideologia e sim por grupos pessoais, que se organizavam em torno de algumas causas corporativas e provincianas.

Como denunciavam os republicanos em 1870, o Brasil nunca teve tradição partidária, e esta nunca teve um caráter nacional. Isto contrasta com os países vizinhos e seus partidos centenários, como os Colorados e Blancos no Uruguai; no Paraguai, Colorado; na Argentina, a União Cívica Radical, todos com mais de um século, e recentemente, com mais de meio século, o Peronismo, que ainda hoje ninguém sabe o que é — há apenas a figura de um coronel que implantou um anarcopopulismo naquele país que provocou, paradoxalmente, alianças e confrontos entre trabalhadores e militares.

Outra característica de que falei é a ausência de partido nacional. No Brasil, ele só foi criado em 1945, por meio da Lei Agamenon Magalhães, e os primeiros a surgirem foram a União Democrática Nacional, o Partido Trabalhista Brasileiro e o Partido Social Democrático. Hoje há uma colmeia de partidos, o que está tornando o país ingovernável.

A Constituição diz que é intocável a “forma federativa” e silencia sobre “república”. Mas republicano passou a ser a palavra mais usada na política e, embora ninguém saiba o que é republicano, de qualquer atitude que seja contrária à sua, diz-se que não é republicana.

Assim, republicano passou a ser um intangível código de conduta, em vez de uma forma de governo. Qualquer coisa é logo contestada: “Esta não é uma conduta republicana.”

E não se sabe o que é a conduta ou a regra republicana!

A Constituição de Pernas Quebradas

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Luís Maklouf, que escreveu um dos melhores livros para se entender a Constituição e explicar como ela teve uma vida até agora completamente híbrida e incoerente, começa o seu livro 1988: Segredos da Constituinte dizendo que é difícil e quase impossível contar uma história tantas vezes contada.

Seu livro é um conjunto de depoimentos dos constituintes mais importantes, daqueles que a fizeram, escreveram e receberam a chuva de lobistas e de seus interesses corporativos.

Esse fato dá a noção de como foi desorganizado o trabalho da Assembleia e como faltou a ela a capacidade de ter uma visão de conjunto da Constituição.

O livro abre com as declarações do grande Afonso Arinos, um dos maiores pensadores do Brasil, que afirmou: “Nós estamos navegando na bruma, estamos criando nosso próprio caminho no meio da névoa. Não temos aqueles aparelhos que indicam que a névoa está para se dissipar ou que ela pode ser vencida, como os aeronautas. Estamos sendo aeronautas a pé.” Afonso presidira a Comissão de Estudos Constitucionais que Tancredo Neves prometera criar para fazer um anteprojeto de constituição —, repetindo o papel de seu pai na famosa Comissão do Itamaraty, que fez o anteprojeto da Carta de 1934.

Tudo isso pela relutância de Ulysses em aceitar oficialmente o anteprojeto, a que afinal recorreram plagiando em momentos de escuridão. Mas não só grandes nomes, como Afonso Arinos, constataram as dificuldades da ausência de um anteprojeto. Gastone Righi, no momento da partida, constatou: “Somos a figura do navio que zarpa de um porto sem ter plotada sua rota, sem rumo estabelecido e sequer destino escolhido.” (Depoimento a Maklouf.)

Sem ideal nem rumo partiram para discutir do princípio ao fim dos trabalhos o tempo do meu mandato, que era de seis anos e eu, ingenuamente, achando que o efeito seria o mesmo da Constituição de 1946, quando o Presidente Dutra, que tinha um mandato, como o meu, de seis anos, abdicou de um e foi recebido como um gesto de grandeza. O meu gesto de abrir mão de um ano de mandato foi considerado ambição, por uma Constituinte cheia de candidatos à Presidência da República, a começar pelo Presidente Ulysses. E criou-se a maior fake news de nossa História: de que meu mandato era de quatro e eu consegui aumentar para cinco anos!…

Assim, os problemas que vivemos em mais de trinta anos de existência da Constituição decorrem de sua falta de unidade e hibridez, parlamentarista e presidencialista, de seu detalhismo e da ausência de um objetivo comum, um foco de coerência. Perdemos uma oportunidade única: fazer uma nova Carta que assegurasse novos tempos, inovadora e moderna, com o objetivo de ver um grande futuro e não fosse uma lanterna na popa, olhando para o passado.

A consequência é esta Constituição que já ensejou dois processos de impeachment — quase três, pois o de Michel Temer chegou a ser votado na Câmara dos Deputados — e é vista como de pernas quebradas.

Uma frase verdadeira e atual

por Jorge Aragão

A Revista Veja trouxe uma frase do ex-presidente da República, José Sarney, sobre o nosso atual momento na política e no Judiciário.

A frase além de verdadeira e perfeita, refletindo nitidamente o triste momento que o Brasil vai atravessando

“Judicializaram a política e politizaram a Justiça”, afirmou José Sarney, que fez questão de dizer que ouviu a frase de Nelson Jobim, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal.

Ou seja, os problemas políticos ultrapassaram os limites dos parlamentos e quase sempre tem sido decidido pelo Judiciário. Já o Judiciário, que deveria pautar suas decisões nas leis, tem quase sempre sendo acusado de decisões políticas.

Uma frase, infelizmente, verdadeira e atual.

A Transição e a Constituição

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Na noite da agonia de Tancredo colocaram o dilema político de quem devia assumir a Presidência da República. A minha decisão de só assumir com Tancredo Neves é de todos conhecida. Alguns segmentos políticos pensavam que deveria ser o Ulysses Guimarães. Mas este, como grande homem público, encerrou a discussão tendo comigo o seguinte diálogo, tantas vezes repetido: “Não assumo porque a Constituição determina que é o Vice-Presidente”, e incisivamente me disse: “Sarney, não queira criar caso, lutamos para chegar até aqui, você não tem o direito de nos criar agora qualquer dificuldade. A Constituição determina que é você que deve assumir a Presidência.”

Assim fui Presidente pela força da Lei Maior: a Constituição.

Participei, por vezes como figurante, algumas vezes como protagonista durante mais de um terço do tempo da construção de nossa democracia, que começou em 1822. A Independência foi o primeiro passo bem-sucedido para escaparmos não só da condição colonial — que formalmente deixáramos em 1815 —, mas também da autocracia a que fôramos submetidos por mais de 300 anos. A obra dos nossos fundadores, sintetizados na figura de José Bonifácio, é a de instituir um país sob a regência da Lei, um Estado de Direito. A herança de 1822 é a Constituição de 1824.

O mesmo espírito inspirou os construtores das Cartas Constitucionais de 1892, 1934, 1945. Houve retrocessos, como a Constituição do Estado Novo. Vi o suicídio de um Presidente acuado por grave crise governamental. Vi, já Deputado, um Ministro da Guerra colocar tanques contra um Presidente desarmado. Vi a resistência de Juscelino Kubitschek a levantes armados. Vi, de muito perto, o desastre da tentativa de Jânio Quadros de sobrepor sua vontade à do Congresso Nacional por intermédio de hipotéticos “braços do povo”. Parlamentarista, vi a imposição, contra meu voto, de um parlamentarismo que era uma simples diminuição do mandato de João Goulart.

Durante a transição para a democracia coube-me a tarefa, honrosa e patriótica, de Comandante em Chefe das Forças Armadas. Com elas estabeleci duas diretrizes: a de que, devendo todo comandante zelar por seus subordinados, cabia-me defender as Forças Armadas — e isso o fiz, garantindo que não se fizessem contra essa Instituição vendetas ou diminuições; em segundo lugar, afirmei que a Transição Democrática seria feita com as Forças Armadas, e não contra elas.

Faz 34 anos. Nunca, em nossa História, tivemos tanto tempo de regime democrático sem um pronunciamento militar. O respeito que juramos à Constituição tem nele seu ponto basilar, cabendo ao Supremo Tribunal Federal a sagrada missão de ser seu guardião (art.102 da Constituição Federal).

Assim, como testemunha e protagonista da História da Democracia no Brasil, peço que lembremos Rui Barbosa: “Fora da lei não há salvação”.

A Terra em perigo

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Em 1990, estávamos bem perto da caída do Muro de Berlim. Ali começava o fim das ideologias, e por todo o mundo surgiu uma nova referência, o Meio Ambiente, conquistando os corações dos jovens, que saíram atrás de um vilão. E acontecia um desastre aqui no Brasil: com as oportunidades de crescimento do consumo, estavam tocando fogo na Amazônia, a maior floresta úmida na face da Terra.

Eu tive que enfrentar o problema, pois exercia a Presidência da República, e minha atitude não foi a de culpar os que nos apontavam o dedo, mas de tomar a dianteira na defesa do Meio Ambiente no Brasil: reuni todos os órgãos setoriais espalhados por diversos Ministérios (cinco) num órgão único que tomasse a liderança da causa. Nasceu aí a ideia da criação do Ibama. Iniciei o programa “Nossa Natureza”, que executou com energia e rapidez todas as ações necessárias e urgentes para responder às críticas e, sobretudo, reduzir drasticamente incêndios e desmatamentos.

Para mostrar que o Brasil não era o vilão da Natureza, propomos o País como sede da 2ª Conferência Mundial do Meio Ambiente. A Noruega já estava praticamente escolhida. Enviei o Embaixador Paulo Tarso Flecha Lima, pessoalmente, a todos os países para fazer do Brasil a sede da Conferência. Fomos vitoriosos nessa reivindicação nas Nações Unidas. Deixei o Brasil escolhido, e a Conferência Eco-92, a Cúpula da Terra, realizou-se aqui, no Rio de Janeiro, com grande repercussão mundial.

Ali se consolidou a ideia de que a poluição e as agressões de toda espécie à natureza estavam conduzindo a um processo terrível de mudanças climáticas. A partir dali a Humanidade buscou estabelecer políticas de reversão do desastre. Logo se verificou que eram impossíveis e que no máximo se podia estabelecer limites e medidas de contenção. Já sabíamos que a Terra não aceitava tudo. Que sua reação mais imediata era o aquecimento global. Que os mecanismos que provocavam o aquecimento eram o efeito estufa. Sabemos o que não podemos fazer: queimar combustíveis fósseis; queimar florestas; insistir nas monoculturas… Sabemos o que temos que fazer: preservar a natureza; trabalhar em união para mudar os paradigmas do consumo conspícuo; substituir as fontes de energia por energia renovável — realmente renovável, não hidroelétricas, que estão vulneráveis às mudanças climáticas —; difundir a solidariedade.

Infelizmente, a cada meta que se estabelece, logo aparecem os interesses econômicos mais rasteiros para falar que são impossíveis, falar nos prejuízos, na competitividade. Interesses burros, pois o que surge é uma nova economia, dessa vez sustentável. Enquanto isso, vemos o que o clima faz: nos EUA, os desastres na costa leste e no Golfo do México; na Europa, as secas e as ondas de frio que aconteceram na primavera; aqui, as secas que esvaziaram nossos reservatórios.

Há uma certeza: as mudanças climáticas ameaçam a Humanidade e exigem de todos e de cada um de nós a defesa da Natureza. Ninguém tem como saber aonde chegaremos.

Anni Horribiles

por Jorge Aragão

 

Por José Sarney

Na História da Humanidade passamos por períodos bons e períodos maus. A própria Terra atravessou transformações gigantescas até sua formação atual, que continua e continuará até que, nas previsões atuais, o Sol esquente até se tornar uma gigante vermelha em cinco bilhões de anos, se esfrie — e ninguém ainda chegou à conclusão do que então acontecerá com ela, Terra, talvez seja simplesmente absorvida pela estrela.

Do mesmo modo os continentes sofrem transformações geográficas e são vítimas do mundo cão, com a infinidade de furacões e terremotos, que, apesar de exaustivas e intensas pesquisas, somos impotentes em evitar. Mas não nos acostumamos com eles, que continuam a provocar catástrofes enquanto nos amedrontamos com palavras como “tsunami”.

Os países também sofrem seus anos de baixo e alto astral. Na Inglaterra, em 1992, no desespero das guerras dos tabloides sobre a família real, que sofria muitos ataques e problemas, tendo por carro-chefe os escândalos em torno da Princesa Diana, a rainha Elizabeth chamou aquele de annus horribilis.

Agora o mundo pode dizer a mesma coisa com a epidemia do Coronavirus. O Brasil, que, como outros países, sofre a surpresa da epidemia, enfrenta uma série de crises de natureza política — em estado de desintegração com vazio de lideranças —, de natureza econômica — com a inflação em alta, o mesmo com os juros —, e agora, para aguçar nossas desgraças, surge o fantasma da crise da energia e da falta de água nas grandes cidades. Os reservatórios estão vazios e atravessamos uma seca que atinge nosso território continental, com agravamento das queimadas em todo o País e a incapacidade de conjurar essa catástrofe ecológica.

Não há dúvida de que estamos vivendo um período de aquecimento da Terra, com os dados já existentes do aumento de um grau desde a Revolução Industrial, com a maior frequência de fenômenos como El Niño — o aquecimento das águas dos oceanos em determinadas regiões do Pacífico, com reflexos mundiais, mas em especial na América do Sul. Exacerbam-se enchentes e secas. Até o Rio Grande do Sul, há cinco anos, enfrenta um regime de invernos irregulares com consequências na lavoura e na economia.

É com sentimento de tristeza que vemos se repetir o desastre no Pantanal, que, no ano passado, teve um terço do seu território queimado — metade em áreas ocupadas pelo homem —, já perdeu três quartos da sua superfície de água e talvez não tenha capacidade de sobreviver. Na Amazônia vemos também se repetirem os picos de destruição. Vemos o restinho — 12% — que sobrevive da Mata Atlântica ser atingido de maneira recorde. Os produtores deviam perceber o prejuízo das queimadas para as safras e para a reputação de nossa agricultura e ajudar a combatê-las.

E agora não temos medidas de prevenção da crise hídrica, aumentando o risco de apagão elétrico e desabastecimento d’água nas cidades. Era só o que nos faltava.

Ainda bem que não temos família real.