Flores da Cunha

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Quando cheguei à Câmara, lá estava o General Flores da Cunha, de terno branco, sempre de roupa clara, gravata borboleta, cabeça branca e contando histórias dos pagos gaúchos. Sua história já era, então, uma lenda: fora deputado desde a legislatura de 1913, senador em 1928, um dos líderes da Revolução de 30, governador do Rio Grande do Sul em 1935; exilado no Estado Novo, voltara ao Brasil em 42 e fora preso na Ilha Grande; constituinte pela UDN, tornara-se presidente da Câmara em 1955.

No primeiro dia em que nos cruzamos, ele pegou no meu braço e perguntou:

— Menino, de onde vens?

— Do Maranhão.

— Isto aqui já é jardim de infância?

Eu era bem jovem: estava nos meus 25 anos.

Certa vez, num debate na Câmara, o orador invocou aquele exemplo sempre usado quando se quer referir a uma coisa impossível: “É mais fácil um boi voar…

Quando Flores da Cunha, criador, admirador de cavalos e de corrida, ouviu isso, levantou-se, foi ao microfone e disse:

— Boi não sei se voa, mas cavalo, se for alazão, voa!

Flores da Cunha presidia a Câmara, e eu fui, como Vice-Líder da UDN, pedir-lhe que convocasse uma sessão noturna para votarmos uns projetos. Ele me disse que fosse ao 1º secretário, Deputado Wilson Fadul, para que ele fizesse a convocação.

Fui ao Fadul, que me disse:

— Sarney, só convoco se o General Flores da Cunha mandar por escrito.

Retornei ao Flores da Cunha e repeti-lhe o que acabara de ouvir do Fadul. Ele me respondeu:

— Volte ao Fadul e diga-lhe que a palavra do General Flores da Cunha vale mais do que a sua assinatura.

Era um frequentador assíduo do jóquei-clube, onde não perdia a chance de jogar num páreo. Já na velhice, estava passando por dificuldades, e perguntaram-lhe o motivo de sua situação.

Ele respondeu:

— Mulheres ligeiras e cavalos lerdos!

Discursava na tribuna da Câmara e um deputado o aparteou dizendo:

— Vossa Excelência dá uma no cravo e outra na ferradura!

O general respondeu rapidamente:

Mas não tenho culpa de você se mexer tanto!

Quando Juscelino mandou à Câmara dos Deputados o projeto das tesoureiras letra “O” — classificação alta na tabela de vencimentos do funcionalismo —, regularizando cargos que ele tinha preenchido, diziam, com moças muito bonitas, o General Flores da Cunha pegou-me pelo braço e perguntou:

— Vais votar neste projeto?

Eu respondi-lhe:

— General, do senhor eu esperava bons exemplos, mas em vez disso me dá um mau exemplo pedindo meu apoio a um projeto vergonhoso como este?

Ele me respondeu:

— Sarney, olha ali, naquela tribuna…

Eu olhei, e ele me mostrou uma velhinha elegante, de chapeuzinho de lado, assistindo aos debates na Câmara. Então acrescentou:

— Aquela é a Rosita. Ela fazia nossa felicidade quando nos defendíamos do minuano no tempo dos provisórios — forças armadas estaduais, compostas por brigadas militares e milícias civis. Ela vai ser nomeada tesoureira letra “O”. Então tu achas que, porque Adão, pai de todos nós, nos meteu nesse sacrifício de trabalhar para comer, para tudo na vida, eu não devo, por motivo de gratidão e amor, aumentar o orçamento da República um pouquinho por causa de uma mulher?

E completou:

— Uma vez, na tenda da campanha, esquecido de que estava fumando um bom charuto, queimeia! Ela reagiu, em trejeitos de carinhos: “General, usted me lastima!”

Combates do Neiva

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Um dos grandes amigos de meus primeiros anos de política foi Neiva Moreira. Alguns anos mais velho do que eu, Neiva era “americano” de Nova Iorque, município do Maranhão. Começou no jornalismo no Pacotilha, jornal de São Luís, que foi comprado por Chateaubriand, que levou Neiva para os Diários Associados no Rio de Janeiro. Fomos colegas na Câmara dos Deputados nas três legislaturas que lá passei.

Neiva era um grande político, tinha espírito público e, sobretudo, um temperamento revolucionário, o que fez com que chegasse ao extremo: quando Brizola criou o Grupo dos Onze, Neiva transferiu seu título do Maranhão para o Rio de Janeiro, acreditando que seria feita uma revolução com o Brizola. Conseguiu apenas ser cassado em 1964 e amargar quinze anos de exílio.

Era uma personalidade em ebulição, mas, acima de tudo, Neiva era um homem correto, honesto e idealista.

Ainda no Maranhão, naquelas lutas políticas sem quartel, fizemos uma conspiração para levantar a Polícia do Estado e derrubar o governador, que, naquele tempo, era interino — o meu colega de faculdade Eurico Ribeiro.

Para isso, contávamos com um oficial da Polícia, Coronel Gondim, que era muito exaltado e foi o escolhido para fazer o ataque, transformando-se no herói da Oposição, embora a rebelião tivesse terminado em nada, só na vergonha de o nosso herói ter saído preso: cumpriu 60 dias de cadeia por indisciplina.

Um dia, estávamos no Jornal do Povo, o Neiva Moreira e eu, quando o Coronel Gondim entrou assustado, pegou uma cadeira e sentou-se num canto da sala. Só ouvimos, do lado de fora, a sua mulher gritando:

— Saia daí, seu covarde, que eu quero te quebrar a cara com este sapato!

Abrimos a porta e vimos a esposa do Coronel Gondim — que o tinha flagrado no cinema com uma moça —, de sapato na mão, querendo invadir a nossa sala e espancar o nosso herói. Este estava amarelo num canto e pedia:

— Segurem a minha mulher! Segurem a minha mulher! Segurem a minha mulher!

Então, quando encerrou o expediente, eu disse:

— Hem, seu Neiva? Veja nossa missão: defender o nosso herói de apanhar da mulher!

Clóvis Sena, grande jornalista e intelectual, diretor de redação do Jornal do Povo, escrevia as manchetes. Nesse tempo, o jornal não era feito: acontecia. As matérias escritas eram compostas à mão nos tipos e montadas na página para serem impressas; página cheia, ia para o prelo. Cabia a mim separá-las e dizer aos leitores: “Segue na página tal.” Notícias internacionais vinham através de um rádio velho, ouvido com dificuldade por Clóvis Sena.

Um dia o nosso concorrente anunciou a queda do rei Faruk, do Egito, e a ascensão do General Nasser, que tanta influência exerceu no Oriente Médio. Neiva Moreira foi a Clóvis Sena.

— Não houve nada internacional que desse no rádio na noite passada?

— Só uns tirinhos ali pelo Egito, disse-lhe Sena.

— Pois é, seu dorminhoco, nosso concorrente dá em manchete a queda do mais antigo Governante da face da Terra, uma monarquia de cinco mil anos, nós não damos nada, e você ainda me diz que foram uns tirinhos no Egito!

Já naquela época o compromisso do jornalismo com a verdade era um problema. De novo, as fake news têm o nome e o descaramento dos que as manipulam ostensivamente.

Odylo Costa, filho, estava no Maranhão quando um velho jornalista, Zuzu Nahuz, publicou que o Senador Vitorino Freire teria sido agredido numa sessão do Senado. Vitorino reagiu com uma certidão de que no dia noticiado não houvera sessão na Casa.

Odylo, perplexo com o desmentido, perguntou a Neiva Moreira:

— O Zuzu é veraz?

Neiva respondeu-lhe:

— Pra cá, é.

E deu a justificativa:

— Essa certidão do Vitorino deve ser falsa!

O crime e a ameaça

por Jorge Aragão

Por José Sarney

– A sociedade se organizou como Estado para enfrentar o medo da morte violenta, diz a velha fórmula de Hobbes. Se não evita a morte, todo o Estado desmorona, como um castelo de cartas. E, infelizmente, há muito tempo o Brasil tem falhado nesta tarefa. Tenho escrito aqui repetidamente contra a violência, que nos cobra preço maior do que o de muitas guerras, atingindo os que morrem e suas famílias, também vítimas irremediavelmente marcadas.

Os episódios recentes no Rio de Janeiro acentuam uma das faces mais terríveis desse massacre: o aspecto racial das mortes. As estatísticas mostram que as vítimas são principalmente os negros, e os negros jovens; e como é grande essa preferência. Os que defendem as armas dizem que armas não matam, que as pessoas matam. A verdade é que as armas matam porque estão na mão de pessoas que querem matar.

O caso de Moïse Kabogambe, o refugiado congolês, que foi morto a pauladas, mostra que as pessoas matam com as mais diversas armas. A brutalidade do ato, longo e prolongado pela agonia, não pode esconder sua causa. Moïse não era suspeito de nada, mas culpado de ser negro e estrangeiro em terra de milicianos. Sua morte ignominiosa, crudelíssima, a pauladas e pontapés, põe de joelhos o Brasil.

Também gratuito foi o assassinato de Durval Teófilo Filho, que, sendo negro, era vizinho de brancos preconceituosos. Seu assassino, ao entrar no condomínio em que ambos moravam, viu aproximar-se um negro com a mão numa mochila e, tendo um revólver — não é por ser sargento que ele tinha a arma, mas pela leniência da regulamentação da lei —, achou que devia atirar em “legítima defesa”.

Há quem pense, portanto, que a presunção de ameaça legitima o crime. A extensão desse raciocínio absurdo é que o diferente — e o diferente no Brasil nem sempre é minoria numérica, pois são maioria de nossa população os descendentes de africanos e as mulheres — é uma ameaça para os que se pensam superiores. Essa ideia desintegra não somente o Estado, como também a sociedade, nos aproximando do que os Estados Unidos têm de pior, que nunca jamais em tempo algum deveria ser copiado.

Uma continuação desse raciocínio de legitimidade da intolerância e da violência é o espetáculo da defesa do direito ao nazismo e dos nazistas fazerem o que quiserem, debate que dominou as mídias sociais essa semana. Eu exagero ao dizer que é esta a síntese do que se discutiu nos últimos dias? Creio que não. O nazismo, como outras intolerâncias, pouco se importa com o argumento dos outros. O seu argumento é ação, e a sua ação é a destruição do outro.

A intolerância foi sempre fonte de violência. Não podemos esquecer que a intolerância religiosa causou as terríveis guerras de religião e ainda hoje alimenta o terrorismo. Não podemos esquecer que a intolerância está na origem dos genocídios que envergonham a Humanidade.

Estes crimes são uma ameaça à sobrevivência do Estado e das pessoas. Por isso é preciso dizer não à violência.

Um perfil de coragem – parte II

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Contei na semana passada a história do grande gesto de coragem cívica do Adauto Lúcio Cardoso ao defender a Lei acima das contingências políticas. Ele foi, sem dúvida nenhuma, um dos grandes brasileiros do século passado. Era de uma retidão absoluta, que não o impediu de fazer política com todas as qualidades — ao contrário do que se costuma dizer para desqualificar a política e os políticos, a política não apenas pode, mas deve ser feita, para ser legítima, com a visão dos valores éticos que pautam a sociedade. Adauto era uma fortaleza moral, impávido, respeitado por toda a Câmara, por todo o Congresso, por todos.

Sua vida política começou com a assinatura do Manifesto dos Mineiros, um dos pontapés que derrubou a ditadura Vargas. Vereador na Capital, não aceitou a decisão do Senado de impedir que a Câmara de Vereadores analisasse os vetos do Prefeito e renunciou a seu mandato. Eleito para a Câmara dos Deputados, logo tornou-se um dos principais membros da Banda de Música da UDN.

Em 1966 foi eleito Presidente da Câmara. Foi a Castelo Branco e pediu o compromisso de que não houvesse cassações: não as aceitaria. Pouco depois da eleição de Costa e Silva, em outubro de 1966, saiu uma lista com a cassação de quatro deputados. Adauto, que estava no Rio, voltou a Brasília e disse que, enquanto ele ali estivesse, deputados não sofreriam restrições de direito. “Eu poderia lavar as mãos, como Pilatos, mas não lavaria minha consciência.”

O Ministro da Justiça disse que a posição de Adauto de submeter as cassações à análise da Câmara era “um absurdo inconcebível”. Mas Adauto ficou firme na garantia aos deputados que permaneciam na Casa. Um ato complementar “considerando [que] entendeu o Senhor Presidente da Câmara…” colocou em recesso o Congresso Nacional. Adauto aguardava em sua sala desde as 4 horas da madrugada. Uma hora depois forças militares invadiram o Congresso. Pôs-se de pé no alto da escada que dá acesso do segundo andar ao plenário da Câmara dos Deputados. Quando o comandante da tropa chegou, ele enfrentou: “Aqui estou como representante do poder civil.” E o militar contestou: “Aqui estou como representante do poder militar.” Adauto replicou: “Então, pela força, entre no Congresso, mas jamais com a minha complacência ou o meu reconhecimento.” Passado o recesso, Adauto renunciou à Presidência da Casa.

Para mostrar a grandeza de outro homem público, o Marechal Castello Branco decidiu, já nos últimos dias de seu governo, ao vagar uma cadeira de ministro do Supremo Tribunal Federal, indo contra todos os “revolucionários”, que estavam com o Adauto engasgado na garganta, convidá-lo para ser ministro da Suprema Corte.

Ali no Supremo, mais uma vez, Adauto iria mostrar quem ele era.

Durante o julgamento, em março de 1971, no Governo do Presidente Médici, da constitucionalidade do decreto-lei 1.077/1970, que estabelecia a obrigatoriedade de censura prévia, inclusive a livros, o Ministro Adauto disse que, como juiz, jamais concordaria com isso. Deu, então, seu voto pela inconstitucionalidade do decreto, afirmando que o livro era intocável, não poderia sujeitar-se a nenhuma censura e que sua publicação deveria ser livre.

Colhidos os votos, Adauto foi vencido e o Supremo aceitou o arquivamento da ação pelo Procurador-Geral da República, o que, na prática, autorizou a censura.

Adauto levantou-se, tirou a toga, enrolou-a, colocou-a sobre sua cadeira e deixou o Supremo Tribunal Federal! Jamais voltou.

Esse era Adauto Lúcio Cardoso.

Ao escrever estes episódios ainda me comovo lembrando sua figura…

Um perfil de coragem – I

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Tenho retomado aqui pequenas narrativas sobre a vida e seus personagens que recolhi há alguns anos com o título de Galope à Beira-Mar. Nele conto histórias de grandes brasileiros, grandes políticos que engrandecem nosso País e são exemplos para as novas gerações. Entre eles se destaca Adauto Lúcio Cardoso, um exemplo de coragem política como os do famoso livro de John Kennedy, Profiles in Courage.

Ninguém igualava Adauto no combate a João Goulart, ao PTB e a Getúlio. Com essa marca e sendo líder da UDN, ao saber que os ministros militares — do Exército, da Aeronáutica e da Marinha — tinham feito um manifesto vetando a posse de Goulart, vice-presidente da República, como sucessor de Jânio Quadros, surpreendeu a Câmara dos Deputados.

Eu estava presente na sessão extraordinária do dia 27 de agosto de 1961. Era o fim da tarde. A Casa regurgitava de ódio e paixão, dividida entre os que queriam a assunção do Jango e os que queriam que os militares dessem um golpe evitando essa posse.

Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumira interinamente a Presidência da República sem ter poder algum, porque o poder estava nas mãos dos militares.

No meio daquele tumulto, quando todos esperavam que Adauto Lúcio Cardoso fizesse um discurso daqueles que ele sabia fazer — e como só ele sabia: com uma linguagem pausada, contundente, verrina e profundamente agressiva —, ele surgiu com um papel enrolado na mão. Dirigiu-se à tribuna e leu a seguinte petição:

“Adauto Lúcio Cardoso, advogado e deputado federal, representante eleito pelo povo do Estado da Guanabara, no cumprimento dos deveres do mandato que exerce, vem oferecer contra o senhor Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, ora no exercício da Presidência da República, contra o Ministro da Guerra, contra o Ministro da Aeronáutica e contra o Ministro da Marinha, representação na forma da lei número 1.079, de 10 de abril de 1950, cujo art. 13, item 1, estatui serem crimes de responsabilidades dos ministros de Estado os atos nela definidos, ‘quando por eles praticados ou ordenados’.”

Este era o Adauto Lúcio Cardoso: acima de todos os interesses políticos, acima de todas as suas responsabilidades de chefe da oposição, invocava a Lei para processar por crime de responsabilidade aqueles que tinham feito uma comunicação dizendo que não dariam posse a João Goulart, conforme os termos da comunicação de Mazzilli ao Congresso Nacional: “…na qualidade de chefes das Forças Armadas, responsáveis pela ordem interna, me manifestaram a absoluta inconveniência, por motivos de segurança nacional, do regresso ao país do Vice-Presidente João Belchior Marques Goulart.”

Adauto desafiou a todos. Magoou seus companheiros e seus amigos, mas ficou ao lado da legalidade e da Constituição.

A cena está indelével em minha mente de parlamentar. Não presenciei gesto mais patriótico, de maior coragem cívica do que este: sua cabeleira branca, aquela postura de autoridade, aquele homem de grande bravura subindo a pequena escadaria que levava à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados para entregar a sua denúncia.

Aliomar Baleeiro, que era seu amigo-irmão, os dois sempre juntos, estranhou o gesto e gritou:

— Ô Adauto, você fazendo isto?

Adauto parou e, fora dos seus hábitos, da sua polidez e da sua educação, disse em resposta ao Baleeiro:

— Aliomar, vá à m…!

Eu lutei para não chegar perto dele e beijá-lo. Mas guardo até hoje a convicção de que foi a maior figura que conheci no Congresso.

Lacerda no ataque

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Carlos Lacerda! Ele era diferente. Seu olhar era um raio forte. Tinha voz de barítono e pronunciava as palavras com uma acentuada cadência grave, que esgotava os sons, articulando todas as sílabas até o fim, como se recitasse. Quando subia à tribuna da Câmara dos Deputados, tudo parava. Ninguém se atrevia ao menor sussurro. Explodia o vulcão e ele se transfigurava. Seu olhar passava a ser de fúria, as frases saíam como um arremesso de flechas buscando alvos. Quem tinha coragem de intervir pagava um preço.

Eloy Dutra foi um político do PTB — o mais votado na eleição de 58, no Rio de Janeiro. Ficara conhecido por sua campanha contra o Lacerda. Com essa marca, chegara ao Palácio Tiradentes e, em 1962, foi eleito vice-governador da Guanabara.

Para ser fiel a sua bandeira, toda vez que o Carlos Lacerda discursava na tribuna, ele pedia um aparte para atacá-lo. Lacerda concedia o aparte e ouvia até o fim, mas não respondia, apenas continuava o seu discurso.

Uma só vez vi o Lacerda perder a paciência ao ouvir os ataques do Eloy Dutra, que foi quando ele disse:

— Vossa Excelência é uma Greta Garbo velha, pelancuda e sem voz, que vive mendigando papéis pelos auditórios, sem nenhuma das virtudes que teve a grande artista.

Carlos Lacerda, então, retrucou:

— Por isso Vossa Excelência vem aqui? Para colocar pó de mico no meu discurso?

Era o mote de uma marchinha de carnaval cantada por Emilinha Borba. “Vem cá, seu guarda, / Bota pra fora esse moço / Que está no salão brincando / Com pó de mico no bolso! /Foi ele! Foi ele sim! / Foi ele quem jogou / O pó em mim!” .

Certa vez, num debate na Câmara dos Deputados, aparteado pelo Deputado Armando Falcão, Lacerda contra-atacou:

— O país atravessa uma crise muito grande. Sempre se disse que o Brasil estava à beira do abismo. Pois agora, senhor Deputado, roubaram até o abismo!

Em outro momento, em tom mais suave, para criticar Fernando Ferrari — deputado trabalhista pelo Rio Grande do Sul, sério e a esperança de seu partido, que morreu cedo num desastre aéreo —, Lacerda mostrou um livro do adversário e fez uma aposta na tribuna da Câmara:

— Se abrir este livro, em qualquer página, e não encontrar um lugar-comum, renuncio a meu mandato.

Abriu o volume. A primeira frase que leu foi: “A mulher é a rainha do lar.”

Em determinada ocasião, Carlos Lacerda foi acusado de ter violado o decoro parlamentar, cometendo traição, ao revelar um telegrama secreto do Itamaraty. Num discurso memorável – “A corrida dos touros embolados” -, a que eu assisti e que faz parte da História Parlamentar do País, ele disse que, no Parlamento, fingia-se tudo: o apoio, a oposição, os elogios, as críticas, os aplausos, as vaias.

E terminou numa afirmativa que parecia ser dirigida a ele mesmo: — “Aqui, até o ódio é fingido!”

Bom Ano Novo

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Primum vivere, deinde philosophari” — “Viver, depois filosofar”, disse Hobbes no século 18 reformulando os versos antigos de Horácio: “Dum loquimur, fugerit invida aetas: carpe diem quam mininum credula postero.” “Enquanto falamos o tempo foge invejoso: aproveita o dia, confiando no amanhã o menos que puder.”

A longa lição de meus anos me ensinou que, se o mais importante é estar vivo — meu avô dizia que ruim é não fazer aniversário —, não é mal filosofar e confiar no amanhã como curativo dos males de hoje. É verdade que vivi muitos anos bons em que não podia pedir mais da bondade divina, mas também tive — tivemos — a cota de anos velhos que gostaria que tivessem sido diferentes, menos amargos e tristes.

O Ano Velho que acabamos de passar foi daqueles que serão lembrados como anos que devem ser esquecidos, tanta tristeza trouxe à Humanidade e ao Brasil. Só aqui foram mais de 650 mil mortos pela Covid-19, uma desolação. Temos que filosofar, isto é, saber que muitos poderiam ter sido salvos se tivéssemos mantido a tradição brasileira de vacinação expedita, como as tantas campanhas bem-sucedidas que fizemos no passado, quebrando recordes. Ao contrário de outros países nossa população se habituou com as campanhas de vacinação, inclusive com a infantil, aliás há muitos anos obrigatória. Ser obrigatória não é contra os direitos constitucionais, mas resultado deles, pois a vacinação não é um processo individual, mas um instrumento coletivo em defesa do mais básico dos direitos, o direito à vida.

Se tenho um desejo para o Ano Novo é que seja um ano de transformação política. Teremos eleição, boa oportunidade de escolher quem nos representa melhor, mas não é disto que falo; já de garganta seca, insisto que é preciso corrigir alguns pontos da Constituição para fazê-la “instrumento de um país moderno, em que o Legislativo legisle, o governo governe e o Judiciário controle”, como escrevi numa virada de ano, há um quarto de século. Lembrava eu então as mazelas orçamentárias, a dispersão legislativa, as agruras do Judiciário, cada Poder a sofrer percalços e interferências dos outros. A democracia vive de instituições fortes, e fortalecê-las é tornar os poderes harmônicos e independentes.

Precisaríamos que fosse verdade o velho ditado “ano novo, vida nova”, mas sabemos que, ao contrário, ano novo, vida velha, pois ela não se modifica com a simples passagem da meia-noite. Costumo citar o Padre Vieira — é boa certeza de não errar — e o faço mais uma vez. Dizia ele que “o tempo tem duas medidas, uma na realidade, outra na apreensão”. É por isso que é fácil dizer “bom ano”, mas é difícil ter a certeza de que vamos ter um ano bom ou um ano melhor.

É sempre um mistério a virada do tempo e o que o futuro esconde. Se temos motivo ou motivos para apreensão, com mais razão, no entanto, devemos desejar para todos, para cada um de nós e para todos os outros, que o futuro se mostre com uma melhor face, com boas cores, boa sorte, bom tempo e uma felicidade real, uma dessas que se tem quando nasce uma criança ou se experimenta um bom ano.

Bons anos! — é o meu desejo, pois não quero limitar a graça que Deus pode nos dar.

Uma criança pobre

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Numa cama improvisada com capim seco, entre animais, nasce uma criança pobre. É o que conta Lucas: “Aconteceu que, enquanto estavam ali, se cumpriram os dias da parturição dela, e deu à luz seu filho primogênito e envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.” Os anjos vão então a pastores anunciar-lhes a Glória do momento.

A criança, o Menino-Deus, é criada por seus pais em Nazaré da Galileia. O Pai não O entrega a ricos ou poderosos, mas a pobres. Pobres visitados por anjos e cumpridores da Lei.

Jesus Cristo veio cumprir uma missão, salvar-nos. Para isso morreu no despojamento absoluto, entre condenados à morte. Essa adesão irrestrita à pobreza é enunciada ao longo do Evangelho. Diz o Papa Francisco que a preferência da Igreja pelos pobres “não é uma opção sociológica, é uma exigência teológica”.

Num sermão publicado postumamente, o “das Obras da Misericórdia”, o Padre Vieira levantou um enunciado que vai nesse sentido. Disse ele que “nessa pobreza instituiu Cristo um novo, e segundo Sacramento não de outra, senão de Sua própria pessoa, transformando-Se a Si mesmo em todos os pobres do mundo, consagrando-Se neles. De sorte que assim como naquela Hóstia consagrada, e em todas, e cada uma está todo Cristo, assim está todo em todos os pobres, e todo em cada um.”

Se Deus Pai e o Deus-Menino têm essa preferência pelo pobre e pela pobreza, Jesus deixou claro que veio para todos, para a salvação de todos. É o que evidencia a visão da estrela pelos reis magos, gentios e gentis, que se prostraram diante do Menino Jesus e foram logo “abrindo as suas caixas de tesouros, [e] ofereceram-lhe presentes: ouro, incenso e mirra”. Incluíam-se, assim, todos os povos e todas as classes sociais. É claro que sabemos do ceticismo que o Cristo expressaria sobre a possibilidade de os ricos entrarem no reino de Deus, mais difícil que um camelo passar pelo buraco de uma agulha, embora ressalvasse que “a Deus tudo é possível”.

Se o Jesus viveu pobre, nasceu menino, não optou para sua epifania numa aparição Deus ex machina — como um homem completo e formado —, mas por se encarnar na Virgem Maria, Nossa Senhora do Ó, e seguir o caminho humano do nascimento humilde e da vida de menino. Essa é para Ele uma referência constante: “Deixai vir a mim as crianças e não as afasteis, pois delas é o reino dos Céus”. E acrescenta: “Quem não receber o reino de Deus como uma criança não entrará nele.”

O nascimento, a renovação da vida, é sempre uma expectativa de algo que virá. Mas no Menino pobre de Belém é a esperança da ressurreição dos mortos, da vida eterna, do Reino de Deus.

Doidos, mas nem tanto

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Algumas figuras populares são adeptas à política. O nosso Sócrates era um dos que sonhava ser eleito para qualquer coisa. Outro, na década de 1950, aqui no Maranhão, era o Paletó.

Ele dizia sempre: “Sou o número um das Oposições Coligadas.” Eu ainda o conheci: ele não faltava a nenhuma das reuniões dos nossos partidos políticos.

O Deputado Clodomir Millet foi, durante algum tempo, o chefe da oposição. Uma hora resolveu dar uma missão ao Paletó: ir todo dia ao TRE assistir às sessões e trazer de volta o relatório do que tinha sido votado e de como havia votado cada um dos juízes.

Um dia, Paletó entrou, meio cansado e revoltado, na redação do jornal O Povo — que pertencia a Neiva Moreira, um dos nossos líderes —, onde nos reuníamos todas as tardes, e foi logo dizendo:

— Dr. Millet, não volto mais ao Tribunal. Está tudo perdido: um juiz da Oposição — como é o Desembargador Eugênio Piva — votou com o juiz do Governo!

Naquela época a política muitas vezes se tornava violenta. Quando organizamos uma passeata para protestar contra o Governo, que tinha sido acusado de estar queimando as casas dos pobres, das palafitas, cobertas de palhas, o Paletó também quis participar dela.

Neiva lhe deu uma bandeira, dizendo:

— Paletó, leve esta bandeira.

Então, o Paletó, “membro número um da Oposição”, enrolou a bandeira no pescoço, deixando uma parte caída nas costas, e foi, exaltado, à passeata, gritando palavras de protesto. Até que, chegando perto do Palácio, onde havia uma fila de soldados com metralhadoras apontando para a passeata, ele parou e disse:

— Seu Neiva Moreira, está aqui a sua bandeira. Arrume um mais doido do que eu que, daqui, não passo!

No Recife havia outro popular meio doido. Ele andava com um capote pesado, absolutamente inadequado para o clima da região. Com a barba grande, entre profeta e andarilho, acompanhava todos os movimentos da Esquerda pernambucana e gostava, para gozação da cidade, de dar conselhos ao Governador. Deram-lhe o apelido de Malenkov, o efêmero sucessor de Stalin.

Certa vez, encontrou Miguel Arraes num comício, aproximou-se dele e denunciou:

— Dr. Arraes, isso não é possível, o Delegado de Polícia de Caruaru não sabe nada de marxismo. É preciso zelar pela doutrina.

Em 1964 ele foi detido. Na prisão o inquisidor, um capitão revolucionário, ao olhá-lo, foi direto:

— Seu comunista miserável, enfim o pegamos!

Malenkov olhou de lado, sacudiu a cabeça e retrucou:

— Capitão, não venha me furar. Eu sou kardecista, da linha 2 — porque existiram dois Allan Kardec. Comunista, jamais! Sou espiritualista.

Malenkov e Paletó não eram tão doidos quanto todos pensavam.

Estado de bem-estado social

por Jorge Aragão

Por José Sarney

Eu era muito jovem quando comecei a participar da vida política. Eu me reunia com um grupo de amigos na Movelaria de um deles, Pedro Paiva, onde conversávamos sobre literatura e sonhávamos com uma sociedade mais justa, como devem fazer os jovens. A busca da justiça social me fez ser candidato a deputado, iniciando meu destino — minha vocação era a literatura.

Ao longo de tantas circunstâncias da vida política do Brasil de que participei, nunca deixei esse sonho se apagar, pois, sem ele, a política é uma coisa menor, que merece o mal juízo que tantos dela fazem.

Presidente, meu lema foi “tudo pelo social”, e como governador, deputado, senador foi o que sempre busquei. Infelizmente o País e o mundo foram se afastando dos caminhos do Welfare State, o Estado de bem-estar social. Nele a prioridade é o direito à vida, à saúde, à educação, ao trabalho, à aposentadoria.

Esses direitos foram gravados em nossa Constituição. Mas, enquanto iam sendo implantados, iam sendo ameaçados. Há vinte anos eu escrevia que o capitalismo — que, sob ameaça do comunismo, buscara assegurar um Estado democrático que garantisse ao trabalho remuneração adequada, saúde, educação, justiça social — com o fim da dessa ameaça centrara “a grande investida [em] estabelecer-se, a nível global, uma política de destruição do Welfare State”.

Eu insistia que a economia de mercado estava se tornando dogmática e que isso era o princípio do fim. Infelizmente o quadro em que vivemos, nesse sentido, é desolador. O extraordinário esforço de construir um sistema capilar de saúde para todos, o SUS, vive sob ataque: o modelo americano de privilegiar a prestação privada de saúde dividiu os doentes entre os que podem pagar e os que não podem pagar, fazendo desse direito básico uma simples mercadoria. Os planos de saúde faturam anualmente mais de 220 bilhões; para mostrar a iniquidade do sistema basta dizer que com a pandemia seu lucro cresceu em 70%.

A vitória das ideias do mercado é insofismável em todas as áreas. Ele começa seu controle verificando que só poderá ser presidente da República quem tiver sua bênção. A diferença de renda entre os mais pobres e os mais ricos, que tinha caído no meu governo e no do Presidente Lula, voltou a disparar: a renda média dos 10% mais ricos é 30 vezes a dos 50% mais pobres. As sucessivas reformas constitucionais têm driblado a cláusula que veda o retrocesso social para retirar direitos do trabalhador — já se anuncia nova reforma trabalhista — e destruir a previdência social. Mais de metade dos trabalhadores ocupados estão no mercado de trabalho informal, enquanto trinta milhões estão desalentados e nem procuram trabalho. É uma maneira de garantir a inviabilidade da previdência pública, forçando a criação de um sistema semelhante ao que não dá certo na saúde — a não ser para o mercado. O transporte público é privado e custa mais caro para os mais pobres, que moram longe de onde trabalham; a segurança pública, em vezde proteger, também ameaça as famílias; a educação pública se arrasta para sobreviver, inclusive nas universidades, onde até o heroísmo de fazer pesquisa e criar ciência está sob ataque; o meio ambiente vive sob fogo.

O Brasil e os políticos precisam voltar a ter a justiça social como o seu objetivo.